Os Dois “Eus” do Eu, por Yuval Noah Harari

Os Dois “Eus” do Eu, por Yuval Noah Harari

“A ciência não só põe em causa a crença liberal no livre-arbítrio, mas também a crença no individualismo.

Ser um indivíduo significa que eu sou um in-divíduo. O nosso corpo é composto aproximadamente por 37 triliões de células e diariamente este e a nossa mente sofrem inúmeras mutações e transformações. Contudo, se eu prestar atenção suficiente e me esforçar por entrar em contacto comigo próprio, é certo que lá no fundo vou encontrar uma voz única, límpida e autêntica, que é o meu ser verdadeiro e também a fonte de todo o sentido e autoridade do universo.

Para que o liberalismo faça sentido é indispensável que eu tenha um – e apenas um – ser verdadeiro, porque se eu tiver mais do que uma voz genuína como é que sei a que voz devo obedecer quando vou votar, quando faço compras no supermercado ou quando tenho que escolher um parceiro?

Contudo, nas últimas décadas as ciências da vida chegaram à conclusão de que esta história liberal é pura mitologia. O ser único e autêntico é tão real como a alma eterna, o Pai Natal ou o Coelhinho da Páscoa. Se eu realmente perscrutar o meu interior, a aparente unidade que assumo existir dissolve-se numa cacofonia de vozes contraditórias, nenhuma das quais correspondendo ao meu verdadeiro “ser”. Os seres humanos não são indivíduos. São “divíduos”.

O cérebro humano compõe-se de dois hemisférios ligados entre si por um denso cabo neuronal. Cada hemisfério controla o lado oposto do corpo. Existem diferenças emocionais e cognitivas entre os dois hemisférios, embora a distinção não seja nítida. Grande parte das atividades cognitivas envolve ambos os hemisférios, embora em graus diferentes. Por exemplo, na maioria dos casos o hemisfério esquerdo desempenha um papel mais importante na linguagem e no raciocínio lógico, enquanto o direito se destaca no processamento da informação espacial. [No entanto,] o lado esquerdo do cérebro, que controla a fala, não é apenas a sede das nossas aptidões verbais, mas também de um intérprete interno que tenta constantemente dar sentido à nossa vida, recorrendo a pistas parciais de forma a engendrar histórias plausíveis.

Várias experiências diferentes demonstram que dentro de nós existem pelo menos dois “seres” diferentes: o ser que vivencia e o que conta a história. O ser que vivencia é a nossa consciência a cada instante. Contudo, o ser que vivencia não se lembra de nada. Não conta histórias e raramente é consultado na hora de se tomar decisões importantes. Recuperar memórias, contar histórias e tomar decisões importantes são monopólio de uma entidade bem diferente dentro de nós: o ser narrador.

Este narrador está permanentemente ocupado a tecer histórias sobre o passado e a fazer planos para o futuro. Como todos os jornalistas, poetas e políticos, o narrador segue por muitos atalhos. Não conta tudo e geralmente constrói a história recorrendo apenas aos momentos mais intensos e aos resultados finais. Sempre que o ser narrador avalia as nossas experiências, ignora a duração e adota a “regra da intensidade-final” – pois só se recorda do momento mais intenso e do final e avalia toda a experiência de acordo com a média entre os dois. Este efeito abrange todas as nossas decisões.

Diga-se em abono da verdade que o ser que vivencia e o ser narrador não são entidades completamente distintas, antes estão intimamente ligadas entre si. O ser narrador usa as nossas experiências como matéria-prima importante, embora não a única, para as suas histórias. Por sua vez, estas histórias moldam aquilo que o ser que vivencia sente na realidade. A nossa experiência da fome é muito diferente consoante o jejum seja durante o Ramadão, na preparação para um exame médico ou quando não comemos por não ter dinheiro para comida. Os diferentes significados que o ser narrador atribui à nossa fome criam experiências que, na realidade, são muito distintas.

Além disso, o ser que vivencia é muitas vezes suficientemente forte para sabotar os melhores planos do ser narrador. Por exemplo, eu posso tomar a resolução de Ano Novo de começar uma dieta e ir todos os dias ao ginásio. Estas decisões importantes são monopólio do ser narrador. Mas, na semana seguinte, à hora de ir para o ginásio, o ser que vivencia assume o controlo. Não me apetece ir ao ginásio e, em vez disso, encomendo uma pizza, deito-me no sofá e ligo a televisão.

Apesar disso, a maioria de nós identifica-se com o ser narrador. Quando dizemos “eu”, referimo-nos à história que temos na cabeça, e não ao fluxo contínuo de experiências que vivemos. Identificamo-nos com o sistema interno que pega no caos alucinado da vida e dele retira um fio aparentemente lógico e coerente. Não interessa que o enredo esteja cheio de mentiras e de lacunas e a ser constantemente reescrito, fazendo com que a história de hoje negue perentoriamente a de ontem. O que é importante é ter a sensação de que possuímos uma única identidade imutável desde o nascimento até à morte. Daqui nasce a questionável crença liberal de que sou um indivíduo e tenho uma voz interior nítida e coerente que confere sentido ao universo inteiro.

Temos então que até o “eu” é um produto da imaginação, como o são as nações, os deuses e o dinheiro. Cada um de nós é dotado de um sistema sofisticado que deita fora a maior parte das nossas experiências e guarda apenas umas amostras selecionadas, mistura-as com partes de filmes que vimos, de romances que lemos, de discursos que ouvimos e de devaneios em que nos perdemos, e tece a partir dessa enorme confusão uma história aparentemente coerente sobre quem sou, de onde venho e para onde vou. É esta história que me diz o que devo amar, odiar ou escolher para mim. Esta história até me pode levar a sacrificar a vida, se o enredo assim o exigir. Cada um de nós vive um determinado género. Há quem viva uma tragédia, outros vivem um drama religioso interminável, outros encaram a vida como se fosse um filme de ação e há muitos que julgam estar numa comédia. Porém, no fim, são apenas histórias.

As ciências da vida desautorizam o liberalismo ao mostrarem que a liberdade individual é apenas uma história de ficção congeminada por um ajuntamento de algoritmos bioquímicos. Os mecanismos bioquímicos do cérebro criam, a cada momento, clarões de experiência que se apagam imediatamente. Então seguem-se outros clarões, que se acendem e se apagam numa sucessão rápida. Em conjunto, estas experiências momentâneas não formam uma essência duradoura. O ser narrador tenta impor a ordem neste caos inventando uma história interminável em que cada uma daquelas experiências tem o seu lugar e, como tal, um sentido duradouro. Mas, por muito convincente e tentadora que seja, esta história é uma ficção. Os cruzados da Idade Média acreditavam que eram Deus e o céu que davam sentido às suas vidas, os liberais da era moderna acreditam que são as escolhas livres dos indivíduos que dão esse sentido à vida. Tanto uns como outros acreditam em ilusões.

As dúvidas sobre a existência do livre arbítrio e da individualidade não são uma novidade. Há mais de 2000 anos, na Índia, na China e na Grécia, os filósofos já diziam que “o ser individual é uma ilusão”. Contudo, essas dúvidas só alteram a História se tiverem um efeito prático na economia, na política e na vida quotidiana. Os seres humanos são exímios a gerir as dissonâncias cognitivas, sendo capazes de acreditar numa coisa no laboratório e noutra completamente diferente no tribunal ou no parlamento. Tal como o cristianismo não desapareceu assim que Charles Darwin publicou “A Origem das Espécies”, o liberalismo não irá desaparecer só porque os cientistas chegaram à conclusão de que a liberdade individual não existe.”

 

Yuval Noah Harari, in “Homo Deus”, 2015