“Susan Sontag foi a última diva intelectual do século XX.”
Ouvi falar de Susan Sontag pela primeira vez algures nos longínquos anos de faculdade.
Sontag entra nas aulas de estética como uma pensadora original, fruto de um tempo onde reinavam convulsões e incompreensões humanas de várias ordens como, por exemplo, o famoso abismo entre uma coisa e uma coisa percebida – uma época onde ainda se apelava à teoria para entender a realidade e onde se elaboravam tratados sobre o mundo como fenómeno estético.
A fotografia e a imagem ocuparam grande parte do pensamento de Sontag que, em Ensaios Sobre a Fotografia, imortalizou essa tão sua “conceção estética do mundo”.
O fenómeno que permite que as pessoas se possam transformar em imagens – em representações que substituem o indivíduo e que adquirem lugar de destaque face à coisa em si –, foi uma das primeiras paixões intelectuais de Sontag.
As imagens escondem quem a pessoa é de facto, distorcem, omitem e retratam o abismo (que todos habitamos) entre a realidade e a realidade percebida.
Aquela que viria a ser considerada a última intelectual de uma época, nasceu a 16 de janeiro de 1933, em Manhattan. Órfã de pai desde muito cedo, teve uma infância itinerante acompanhada pela mãe e pela irmã. Aos 10 anos conheceria o seu oitavo endereço, em Tucson, no Arizona – o quarto estado dos EUA onde residiu antes de chegar à adolescência. A mãe, Mildred, assumiria uma importância crucial na vida da filha que nunca chegaria a desculpar-lhe o sistema familiar alcoólico, e a fuga à realidade, que tão cedo aprendeu a tornar sua. Acusando a mãe de ser “a rainha da negação” Susan viria a fazer exatamente o mesmo que a progenitora em situações muito parecidas com aquelas que criticava.
Incentivada pela mãe a mentir em relação a questões sexuais, Sontag percebeu muito cedo que, numa época em que os homossexuais eram vistos como pervertidos e criminosos, tinha algo a esconder.
A má relação com a própria sexualidade marcaria a vida do astro literário que, só em 1948, já na universidade, em Berkeley, perceberia que não estava sozinha. Foi graças a esta experiência na Califórnia que Susan escreveria o ensaio que, em 1964, a catapultaria para a fama como escritora, intelectual e vedeta do mundo das artes: Notas Sobre o Camp. 58 teses, com pormenores que roçam o antropológico, sobre um tipo de sensibilidade homossexual que capturou a atenção do público heterossexual como nunca antes um artigo tinha conseguido.
Apesar de tudo isto, aos 18 anos, Sontag casou-se com Philip Rieff, um prestigiado professor que conheceu na universidade de Chicago com quem, um ano depois, viria a ter um filho – David Rieff.
Embora rapidamente tenha percebido que o seu caminho não seria o de esposa e de mãe, passaram 6 anos até Susan “fugir” para a Europa para se reencontrar com a primeira paixão da sua vida, Harriet Sohmers, que tinha conhecido em Berkeley e que, para Sontag, personificava a libertação sob vários aspetos.
Em Paris frequentou o Café de Flore e, se em Los Angeles teve oportunidade de conhecer Thomas Mann, naquela que era considerada a cidade mais sofisticada do mundo em 1957, conheceu Sartre.
Escusado será dizer que o casamento de Sontag acabou e a luta entre os dois intelectuais pela custódia de David não foi bonita de se ver, como acontece regularmente, mesmo entre pessoas cultas.
De volta aos EUA, Susan instala-se definitivamente em Nova Iorque e, graças a alguns benfeitores com quem se cruzou e que apostaram nela mesmo sem provas dadas, começou a escrever para a Partisan Review e, posteriormente, para a New York Review of Books.
É nesta fase que Susan encaixa na perfeição no então considerado o highbrow da sociedade – uma crença que nada tem a ver com classe, instrução, religião ou raça, mas que pode ser definida como “viver segundo valores que não podem ser comprados”: beleza, liberdade, conhecimento e arte.
É também nesta fase que acontecem os primeiros “happenings” em NY – os fenómenos artísticos efémeros que têm a particularidade de não poderem ser comprados e que espelhavam a crítica da contracultura americana ao capitalismo –, que Susan conhece Andy Warhol (e é fotografada por este no Factory!), que inicia um romance com Jasper Johns e publica o famoso Notas Sobre o Camp onde declara que “o mais belo nos homens viris é alguma coisa feminina, o mais belo nas mulheres femininas é alguma coisa masculina.”
O desejo de Susan de se submeter a influências superiores foi o motor erótico que funcionou em muitas alturas da sua vida, terminando com Annie Leibovitz, a quem Sontag chamou burra diversas vezes, mas com quem manteve a relação mais estável e duradoura, até ao fim da sua vida, em 2004.
Entretanto, a guerra do Vietname e o credebility gap de 1968 na América – quando a retórica otimista do governo de Johnson contrastava com o rio de sangue vietnamita – fez com que Susan embarcasse no protesto ativo pela primeira vez na vida, chegando mesmo a viajar para o Vietname e a escrever uma acusação formal contra os EUA em “What’s Happening in America”.
A década seguinte foi profícua em viagens e em paixões. Da China, onde o pai de quem não se lembrava tinha morrido em 1939, a Israel e à Palestina, de Carlota del Pezzo a Nicole Rothschild, com publicações de ensaios e a realização de um filme em Estocolmo, a vida de Susan corria sobre rodas até ter de enfrentar o cancro.
Aos 42 anos Sontag foi diagnosticada com um tumor na mama esquerda, com metástases e em estágio 4. Segundo testemunhas, a sua incapacidade de ficar sozinha agudizou-se e revelou ao mundo o seu lado mais negro. Anos depois, a morte de Mildred aumentou o resvalar para esta autointitulada Senhora Cabra Que Se Autodestrói. Críticas de falta de tato, empatia e altruísmo começaram a disseminar-se entre os amigos que a rodeavam sem que Susan se apercebesse do quão irrascível se tinha tornado.
Nos anos ’80, a sida marcou profundamente a vida de Sontag. Falar de sida significava falar de sexo gay, uma questão de que Susan sempre fugiu e que era agora obrigada a encarar de frente com a irrupção de um “cancro gay” na sociedade que, sem se saber bem como nem porquê, estava a dizimar muitos dos seus amigos.
[A sida apareceu pela primeira vez como notícia na capa do New York Times a 3 de julho de 1981: “Cancro raro detetado em 41 homossexuais”. À frente da Casa Branca estava Ronald Reagan, um anti-homossexual que ignorou a epidemia anos a fio e que ajudou a vincular o silêncio em torno da questão fazendo com que o número de “vítimas invisíveis” não parasse de aumentar. Só em 1984 é que foi anunciado que a sida era um vírus e só em 1986 é que a doença recebeu o nome de VHI – o número de vítimas ascendeu quase aos 40 milhões de pessoas.]
Como acontece regularmente quando a fama ultrapassa a pessoa, muitos dos que tiveram a sorte de conhecer a pessoa por trás do astro literário que representava, sentiram-se desapontados com o aquém da realidade face ao mito.
O paradoxo com que era preciso lidar era impossível ignorar: “A Susan afastava as pessoas, mas a Sontag simbólica era tremendamente atraente.”
Nas duas últimas décadas de vida Susan Sontag foi eleita presidente do PEN American Center (1987), começou uma relação com Annie Leibovitz (1989), encenou “À espera de Godot” em Sarajevo – numa Bósnia destruída pela guerra –, como forma de “salvamento pela arte” (1993), e escreveu os dois romances de que tanto se orgulhava: O Amante do Vulcão (1992) e Na América (1999).
Sontag morreu em 2004, às 7h10 da manhã de 28 de dezembro no Sloan Kettering, em Nova Iorque, vítima de um cancro no sangue. Sobre a sua morte chegaram-nos duas perspetivas, a do filho, David, em Swimming in a Sea of Death e a de Annie Leibovitz em A Photographer’s Life – ambas envoltas em controvérsia.
“Sontag: Vida e Obra” é uma autêntica viagem pelo século XX através de Sontag, mas não se foca apenas nela. Com a realidade cultural, política e social da época como pano de fundo, Benjamin Moser escreveu um dos livros que mais prazer me deu ler.
Rock & Rolla
Abril 2023
Excertos retirados de: Benjamin Moser 2022, Sontag Vida e Obra, Objectiva