Review: “2084” de Boualem Sansal

Review: “2084” de Boualem Sansal

Boualem Sansal nasceu em 1949, na Argélia. Formado em engenharia e doutorado em economia, foi demitido de todos os cargos públicos devido aos seus textos e às suas opiniões contra a islamização crescente da Argélia. Os seus livros têm sido censurados e o autor ameaçado; apesar dos perigos, divide o seu tempo entre a Argélia e Paris.

2084 passa-se no futuro, ou melhor, marca o início do futuro. Só se conhece o mundo a partir de 2084 e tudo o que até aí existiu é esquecido à força de máximas endeusadas. Ati é a personagem principal desta distopia, que nos arrasta para um mundo facilmente imaginável, se quisermos crer no pior da humanidade. Ati é o Winston Smith desta reformulação orwelliana que troca o Big Brother por um Deus com outro nome. (Talvez por isso seja obrigada a considerar que este livro não faria sentido sem o seu antecessor. 1984 será para sempre inédito e quanto mais distopias leio mais Orwell se evidencia.)

Ati é obrigado a passar um ano nas montanhas, num sanatório, e aí – onde o tempo é infinito e as horas se mostram mortas – o  pensamento adquire novas faculdades. Como se um questionar imanente se refugiasse em cada um de nós, mas só em alturas extremas nos deixássemos abarcar pela sua imensidão. As primeiras páginas de 2084  levaram-me à Montanha Mágica de Thomas Mann e talvez tenha sido essa memória que me fez achar o início do sanatório, nas montanhas, uma incursão à História do homem e das suas revelações extremas.

Para Ati, aquele hospital fora do tempo era desestabilizador. Todos os dias ficava a saber coisas horríveis que no rebuliço das cidades teriam permanecido invisíveis mas que ali preenchiam o espaço e colonizavam o espírito, que se via constantemente interpelado, esmagado, humilhado. O isolamento do sanatório era uma explicação. No vazio, a vida torna-se bizarra, nada a sustém, não sabe a que se amparar nem que direcção escolher. Andar às voltas sobre si mesmo sem mudar de sítio é uma sensação deplorável, viver demasiado tempo de si mesmo e para si mesmo é mortal. A doença, por seu turno, arruína muitas certezas, a morte não aceita nenhuma verdade que se pretenda melhor que ela, remete-as a todas para zero.

Depois desse ano nas montanhas, Ati regressa à sua cidade, Qodsabad, a capital do Abistão, através das estradas do país (e aqui temos um laivo de Jack Kerouac e do Pela Estrada Fora embora a ‘civilização’ adquira todo um outro registo). Nesta demanda até à sua cidade, Ati conhece Nas, um pesquisador da poderosa Administração dos Arquivos, Livros Sagrados e Memórias Santas, que lhe transmite uma descoberta que pode pôr em causa o Aparelho e até a própria Fraternidade Justa. Este encontro marca toda a história futura, tanto de Ati como do Abistão, esse país que idolatra Yölah e que se submete a Abi, seu Delegado na Terra.

“Já não há memória de quando a capacidade de julgamento e de revolta desapareceu da terra. Foi erradicada, apenas resta flutuando sobre os pântanos a alma apodrecida da submissão e da intriga… Os homens são cordeiros adormecidos é assim devem permanecer, não se deve perturbá-los… Ora eis que no deserto estéril que é o Abistão se descobre uma pequena raiz de liberdade que cresce na cabeça febril de um tísico sem forças, resistindo ao frio, à solidão, ao medo abissal dos cumes, e que em pouco tempo inventa mil perguntas ímpias. Nota que é isto que é importante, a natureza exuberante da dúvida e do seu parceiro, o questionamento, o pôr em causa precisamente o que tu fazias à tua volta, de forma alusiva ou muda mas perfeitamente audível para aqueles que nunca tinham feito perguntas e cujos ouvidos virgens eram hipersensíveis, mas tu fazias perguntas, palavras e olhares interrogativos que os doentes, os enfermeiros, os peregrinos, os carregadores e todos os ouvintes suplementares escutaram e denunciaram e que o gabinete das escutas registou escrupulosamente… sem esquecer os V que revistam o teu cérebro dia e noite… Não se arranca logo essa erva louca, pelo contrário, ela apaixona-nos, queremos saber o que é, de onde vem e até onde pode ir…”

2084 é o futuro depois do 1984 de Orwell. É como se este já tivesse acontecido em todo o seu esplendor para depois ser consumido pela força de uma nova religião que joga com os mesmos trunfos. Afinal, nada se perde, tudo se transforma. Além de todo esse cenário de radicalismo religioso (que facilmente identificamos com o muçulmano) há ainda um ponto forte a favor de 2084. Ele é também a exaltação daquilo que somos hoje. É como se nos conseguíssemos ver através do futuro e fossemos obrigados a concluir que vivêmos, realmente, no pior dos males.

2084 só faz sentido depois de 1984 e Boualem Sansal tem consciência disso:

“A concepção da abilang é inspirada na novilíngua de IngSoc. Quando ocupámos esse país, os nossos dirigentes da época descobriram que o seu extraordinário sistema político assentava não só nas armas mas também no poder extraordinário da sua língua, a novilíngua, uma língua inventada em laboratório que tinha o poder de aniquilar no falante a vontade e a curiosidade. Os nossos chefes de então tomaram por base da sua filosofia os três princípios que tinham presidido à criação do sistema político de IngSoc: «A guerra é a paz», «A liberdade é a escravatura», «A ignorância faz a força»; acrescentaram-lhe três princípios da sua lavra: «A morte é a vida», «A mentira é a verdade», «A lógica é o absurdo». É isto o Abistão, uma verdadeira loucura.”

 

Rock&Rolla, 2016