“Uma das consequências da transição da sociedade do produtor/soldado para uma sociedade de consumidores recolectores de sensações foi o esgotamento gradual dos vasos capilares do sistema panóptico de manutenção da ordem. O casamento, as famílias, as relações de parentesco, os locais de trabalho perderam boa parte do seu papel de postos fronteiriços avançados da fábrica da ordem societalmente gerida. A coerção aí aplicada quotidiana e rotineiramente perdeu a sua função como veículo da “lei e da ordem”, e pode ser hoje contestada como violência gratuita e crueldade imperdoável.
Uma vez que o Estado vai cedendo a sua função de integração a forças do mercado intrinsecamente desreguladoras e privatizadoras, o terreno abandonado passa a ser preenchido por “comunidades”, não tanto “imaginadas” como postuladas, que se apoderam da tarefa de fornecer garantias coletivas às identidades privatizadas.
O pensamento pós-moderno nada em sonhos de verdade e certezas locais que esperam fazer o trabalho civilizador que as grandes verdades e certezas dos Estados-nação, com as suas pretensões ao papel de porta-vozes da universalidade, não conseguiram levar a cabo: assegurar uma tal unidade de pensamento, sentimento, vontade e ação que qualquer tipo de violência gratuita passasse a ser inconcebível. Mas as comunidades postuladas neotribais esvaziarão decerto essa esperança.
O neotribalismo é uma má perspetiva para todos os que desejam ver o discurso e o debate substituir as facas e as bombas como armas de afirmação de si.
Há duas razões maiores para a associação íntima entre as comunidades postuladas neotribais e a violência.
A primeira é o contexto cultural pós-moderno de um “sobrefluxo” de informação, em que a atenção do público é o mais raro dos recursos e em que o cogito de Descartes foi objeto da reformulação seguinte: “Sou noticiado, logo existo”. Quanto mais ruidoso for o disparo, mais noticiado será, e mais sólida será também a existência. Com a atenção do público atordoada e blasée por efeito de diversões cada vez mais abundantes e aterradoras, só choques mais fortes dos que os de ontem terão alguma probabilidade de a suscitar. A “escalada da violência” é um resultado da rápida usura dos choques, sem excluir os mais terríveis nem os mais destrutivos do ponto de vista emocional. Como dizia Lewis Carroll, trata-se de correr o mais depressa possível se quisermos ficar no mesmo lugar…
A segunda grande razão é a modalidade existencial das próprias neotribos – enquanto comunidades postuladas, comunidades que, ao contrário das tribos de outrora, não têm instituições estabelecidas que mantenham os seus moldes, que as perpetuem e reproduzam. As comunidades postuladas existem apenas conjugadas no futuro – por outras palavras, a sua existência é apenas uma esperança de virem a existir, uma esperança nunca garantida e falha de autoconfiança. Daí o seu nervosismo intrínseco, a sua suscetibilidade e mau humor: bem vistas as coisas, estas comunidades só podem assegurar a sua ainda que breve presença no mundo sob a condição de suscitarem e depois explorarem a lealdade mais intensa por parte dos seus membros. E o método consagrado para a consecução dos seus propósitos é, uma vez mais, a violência – visando alvos ora no exterior, ora portas adentro.
A recoletivização da violência ao serviço da autoafirmação neotribal é apenas um dos resultados da privatização pós-moderna dos problemas da identidade. O outro é a tendência no sentido do desenvolvimento de formas de violência gradualmente “normalizadas”, legalmente consentidas e culturalmente provadas ao serviço da autoafirmação, hoje guiada em medida crescente pela procura da flexibilidade e das opções permanentemente em aberto, pelo desejo de evitar hipotecar o futuro através de compromissos atualmente assumidos, pelo ressentimento ante os limites impostos ao indivíduo pelas necessidades dos outros e pela relutância em aceitar qualquer desconforto que não seja portador de benefícios visíveis em termos de satisfação individual no plano do consumo.
De facto, os deveres e o compromisso, só começam a ser insuportáveis e a tornar-se “problemas” quando aparecem os meios que permitiriam evitá-los: uma vez que esses meios estejam disponíveis, parece estúpido e criminoso não os utilizar, sendo que, entretanto, os fornecedores de meios e instrumentos se esforçam por garantir que as coisas sejam sentidas exatamente assim e que se generalize a compulsão a utilizar os meios e instrumentos que fornecem.
Ora, quanto maior é o número de instrumentos de que dispomos para impor novos moldes à existência, maior é também o número de traços que, no quadro social em que vivemos, passam a ser tidos como “problemas” – problemas insuportáveis em relação aos quais devemos fazer alguma coisa. Quanto mais rapidamente nos encaminhamos para uma “sociedade de um terço”, maior é o número de pessoas que se transformam em “problemas” – o que faz com que, existindo meios disponíveis para as remover do caminho, e aos problemas com elas, pareça não haver qualquer razão para que a sua presença, uma presença constrangedora, ofensiva e opressiva, continue a ser tolerada e sofrida.
A dificuldade de combatermos o holocausto “silencioso”, “sub-reptício” e operando através de “soluções avulsas” assenta na ambivalência ineliminável de praticamente todas as questões em jogo. As boas e más razões distribuem-se em todos ou quase todos os casos equilibradamente entre as partes em confronto. Os dois campos em conflito dispõem de razões moralmente válidas que podem invocar. A verdade é que existem cada vez mais zonas cinzentas, situações ambivalentes e dilemas morais que não comportam soluções univocamente justas. E é assim também que a crueldade mascarada de prestação de cuidados e a violência disfarçada de solicitude têm cada vez mais ocasião de ser postas em prática.”
Zigmunt Bauman, A Vida Fragmentada, 1995