“A ameaça à liberdade de expressão não é nada de novo. O direito moderno à liberdade de expressão tem estado sob ameaça desde que foi conquistado. É sempre verdade dizer-se que “a liberdade de expressão está ameaçada”. Mas hoje em dia passa-se algo diferente.
O perigo está agora também na contestação de quem se diz ser a favor da liberdade, mas na prática procura restringi-la. Trata-se de uma nova ameaça: a guerra silenciosa à liberdade de expressão.
É uma guerra silenciosa, mas quem a trava não é discreto – na verdade, é tudo menos isso. Trata-se de uma guerra silenciosa porque ninguém que queira ser levado a sério admite que é contra o direito à liberdade de expressão. Em termos históricos, ser contra a liberdade de expressão significou ser a favor do fascismo, do totalitarismo e da queima de livros hereges, quando não de seres humanos hereges. Pouca gente gostaria de ser vista a par desses antecessores.
Assistimos então a uma guerra silenciosa à liberdade de expressão; uma guerra que não se anuncia e que é travada por pretensos censores que dizem ser tudo menos isso. O resultado não é uma repressão violenta nem uma censura bruta, mas a demonização das opiniões dissidentes, numa cruzada pelo conformismo. A guerra silenciosa […] é apresentada não como um golpe contra a liberdade, mas como uma defesa de direitos: o direito à proteção contra palavras e imagens ofensivas e odiosas; a libertação do assédio dos meios de comunicação social e dos trolls da Internet; o direito de os alunos se sentirem “confortáveis” nas universidades.
Raramente ouvimos alguém admitir que detesta a liberdade de expressão. Em vez disso, os cruzados arranjam uma maneira codificada de passar a mensagem, e o código pode mudar tão depressa como se fosse controlada por uma máquina Enigma (em vez de por uma assembleia da associação de estudantes).
Os que defendem a liberdade de expressão irrestrita não adoram necessariamente matar Bambis. Antes pelo contrário. A liberdade de expressão é a força vital de qualquer sociedade moderna e liberal. Por conseguinte, as tentativas de restringir a liberdade de expressão, por mais nobre que soe a argumentação, são sempre uma ameaça à liberdade que ajudou a tornar possíveis todos os outros direitos.
No clima intelectual moderno, por vezes parece que ofender os outros é o pior crime do mundo. A coisa é apresentada como uma tentativa progressista de proteger as pessoas de palavras que as magoam, mas tornou-se uma forma disfarçada de insistir que há demasiada liberdade de expressão. Pode parecer uma boa ideia viver num mundo acolhedor e maternal de insipidez inofensiva. O problema é que exigir o direito de não ser ofendido é negar a toda a gente a liberdade de ofender a ética e as opiniões aceites do tempo em que vive. E, sem essa subversiva liberdade de questionar o inquestionável – o direito a ofender -, a sociedade talvez nunca tivesse sequer chegado ao ponto em que os direitos antirracistas e das lésbicas, dos gays, bissexuais e transgénero se tornaram temas aceitáveis no debate público.
O escritor revolucionário François-Marie Arouet, conhecido pelo pseudónimo Voltaire, foi um pioneiro da liberdade de expressão na França iluminista do século XVIII. Atribui-se a Voltaire um dos maiores aforismos históricos sobre o assunto: “Discordo do que dizes, mas defenderei até à morte o direito de o dizeres.” [Esta frase é, na verdade, da autoria da biógrafa de Voltaire, Evelyn Beatrice Hall.]
Hoje em dia, contudo, assistimos à ascensão dos contra-Voltaires. O cri de coeur dos ofendidos primários que vira o princípio de Voltaire do avesso: “Sei que detestarei o que vais dizer e defenderei até ao fim da liberdade de expressão o meu direito de te impedir de o dizeres.” Os contra-Voltaires não desejam discutir ideias ou argumentos que os ofendem. Negam ao outro o direito de os expressar à partida.
Para os contra-Voltaires, nada é mais importante do que as suas emoções pessoais; nada é maior do que o seu ego ou identidade. O seu único critério para saber se uma coisa pode ser autorizada é a forma como ela os faz sentir (e, mais importante, como os faz sentir acerca de si próprios). Os contra-Voltaires não toleram que desafiem as suas opiniões, questionem os seus preconceitos, desrespeitem a imagem que fazem de si ou lhes pisem os calos. O resultado é exigirem limites à liberdade de expressão em nome do seu direito de serem protegidos pelas palavras.
Os contra-Voltaires são tão intolerantes para com os dissidentes quanto os fanáticos religiosos de outrora. Mas, ao passo que os padres de antanho baseavam a intolerância na autoridade presumivelmente objetiva de um supremo Deus exterior, os aspirantes a censores de hoje em dia baseiam a sua nos desejos subjetivos do seu ídolo pessoal interior. São muitas vezes narcisistas que só se veem a si com a diferença de que Narciso se apaixonou pela sua bela imagem placidamente refletida num lago límpido e eles estão apaixonados por uma imagem zangada, arrogante e permanentemente indignada, refletida nas águas turvas das redes sociais.
A ascensão dos contra-Voltaires, que insistem no seu direito a silenciar os outros, assinala uma contrarrevolução na postura ocidental perante a liberdade de expressão. Os contra-Voltaires reivindicam o direito a viver num casulo que os proteja do desconforto que lhes causa ver as palavras dos outros à solta. E não têm pejo em usar formas oficiais e não oficiais de censura para conseguir o que querem.
A liberdade de expressão é demasiado importante para ser restringida, independentemente de poder ser usada e abusada.
No Reino Unido já tivemos de viver sob um Estado autoritário que podia, raramente mas sem pejo, impor censura política em nome da defesa do “interesse nacional”. Agora temos uma coisa que mais parece o “Estado da Indignação”, proibindo-se promiscuamente as palavras e castigando-se quem as pronuncia como forma de terapia, para proteger as pessoas de palavras ofensivas e escandalosas. A censura oficial tem agora um rosto muito mais afável e amigo das pessoas. Mas não é melhor por isso.
Esses grupos de pressão, políticos, figuras mediáticas e ativistas estudantis são os principais contra-Voltaires da vida pública. Frequentemente trata-se de gente que passa a vida a ofender-se e cuja emoção principal (e as emoções contam hoje mais do que as ideias) é a indignação. Trata-se de uma indignação flutuante que, embora pareça refletir convicções morais profundas acerca do assunto, pode rapidamente esmorecer e passar a outro escândalo relativo à liberdade de expressão.
Os contra-voltaires, permanentemente escandalizados, profissionais da ofensa, são relativamente poucos. Exercem porém uma fortíssima influência sobre a política e o debate público – daí a importância desproporcional associada ao seu parque de diversões favorito, o Twitter. Eles ajudaram sem dúvida a criar uma atmosfera em que a defesa de um direito fundamental – a liberdade de expressão – pode ser considerada um extremismo. Não é que a maioria das pessoas, se entusiasmem com a censura oficial, mas muitas interiorizaram a ideia de que é melhor não ofender do que expressar uma opinião controversa. São a “maioria desculpadora”, autocensuradora, simbolizada pelos políticos e pelas figuras públicas que, ao primeiro dedo em riste, pedem desculpa e voltam atrás no que dizem.
Os contra-Voltaires têm tentado reverter alguns princípios há muito estabelecidos da liberdade de expressão. […] Não conseguiram reescrever os princípios jurídicos da Primeira Emenda dos EUA (pelo menos por enquanto). Mas já conseguiram inúmeras proibições nos recintos universitários dos Estados Unidos e do Reino Unido, e moldaram a atitude intervencionista e censuradora do Estado britânico para com o discurso ofensivo.
Esta guerra não é conduzida pelos inimigos tradicionais da livre-expressão. Seria mais fácil defendê-la contra os fanáticos e os censores de antigamente. Esta guerra silenciosa é mais frequentemente travada por políticos, intelectuais, académicos, escritores, juízes e outros liberais. Pode parecer esquisito que o requintado lóbi liberal da elite cultural redunde numa turba de gente capaz de queimar livros.”
Mick Hume, in “O Direito a Ofender”, Tinta da China (2016)