“Saiu do carro e escalou um talude de terra. O vento soprava com força suficiente para lhe marejar os olhos de lágrimas e ele viu surgir diante de si uma elevação em socalcos, na margem oposta de uma estreita faixa de água. Era castanho-avermelhada, de cume plano, monumental, com o crepúsculo a chamejar nas alturas, e Brian achou que estava a ter uma alucinação, que os seus olhos estavam a imaginar um daqueles montes alcantilados no Arizona. Mas aquilo era genuíno e era homem do homem, varrido por um remoinho de gaivotas, e ele percebeu que só podia ser uma coisa – o aterro de Fresh Kills, em Staten Island.
Fora este o motivo que o trouxera a Nova Iorque, e tinha marcada uma reunião ali mesmo, com topógrafos e engenheiros, para a manhã do dia seguinte. Mil e duzentos hectares de lixo amontoado, terraplanado e compactado, com buldózeres a empurrar ondas de resíduos em direção à frente ativa. Brian sentiu-se revigorado ao contemplar aquela cena. Barcaças a descarregar lixo, barcos-vassoura a sulcar os regatos em volta para recolher detritos caídos à água. Viu uma equipa de manutenção a consertar os canos de drenagem na orla dos socalcos em ângulo reto, tubos destinados a controlar a escorrência da água das chuvas. Outras silhuetas, de máscaras no rosto e fatos de proteção, encontravam-se reunidas junto à base da estrutura, a inspecionar materiais isolados para avaliar o respetivo conteúdo tóxico. Era um misto de ficção científica e pré-história, lixo a chegar vinte e quatro horas por dia, centenas de trabalhadores, veículos com lagartas metálicas a compactar os resíduos, uma escavadora de alcatruzes a abrir respiradouros para o gás metano, as gaivotas a fazer voos picados e a soltar guinchos, uma fila de camiões a aspirar o lixo disperso com as suas trombas paquidérmicas.
Imaginou que estava a presenciar a construção da grande pirâmide de Gizé – só que esta era vinte e cinco vezes maior, com camiões-cisterna a borrifar água perfumada nas estradas de acesso. Achou aquela visão estimulante. Tanto engenho e labuta, todo aquele esforço delicado para encaixar o máximo de lixo num espaço cada vez mais exíguo. As torres gémeas do World Trade Center avistavam-se ao longe e ele teve a perceção de um equilíbrio poético entre aquela ideia e esta. Pontes, túneis, barcaças, rebocadores, docas secas, navios porta-contentores, todos os grandes meios e infraestruturas de transporte, comércio e comunicação acabavam por desaguar, no fim de contas, nesta estrutura culminante.
E tratava-se de um corpo orgânico, sempre a crescer, em constante mutação, a sua forma concebida por computador a cada novo dia, a cada hora. Dentro de alguns anos, aquela seria a montanha mais alta de toda a costa atlântica entre Boston e Miami. Brian sentiu um sobressalto e sentiu-se banhado por uma nova luz. Olhou para todo aquele amontoado colossal de lixo e, pela primeira vez, percebeu qual a razão de ser do seu trabalho. O que importava não eram os aspetos técnicos, nem o transporte, nem a redução das fontes de resíduos. Ele lidava com o comportamento humano, com os hábitos e os impulsos das pessoas, com as suas necessidades incontroláveis e desejos inocentes, talvez com as suas paixões, seguramente com os seus excessos e cedências aos prazeres fáceis, mas também com a sua bondade, com a sua generosidade, e a questão fulcral era saber como impedir que este metabolismo avassalador nos engolisse a todos.
O aterro mostrou-lhe com toda a clareza como é que terminava o caudal de lixo, onde é que vinham desaguar todos os desejos e aspirações, a catadupa ébria de ideias erráticas, as coisas por que ansiamos ardentemente e depois já nos são indiferentes. Já vira centenas de aterros sanitários, mas nenhum como aquele. Sim, impressionante é desolador. Sabia que o cheiro fétido, levado pelo vento, penetrava certamente em todas as salas de jantar, quilómetros em volta. Quando as pessoas ouviam um ruído de noite, pensariam que aquela montanha estava a desabar à sua volta, a deslizar numa avalancha ao encontro das suas casas, um terror omnívoro e cinematográfico a encher-lhes as portas e as janelas?
A montanha estava ali, exposta a todos os olhares, mas ninguém a via, ninguém pensava nela, ninguém sabia que ela existia, à parte os engenheiros e os motoristas das camionetas e os moradores da zona, um depósito cultural único, cinquenta milhões de toneladas quando encerrassem o aterro, esculpidas e moldadas, e ninguém falava acerca daquilo, ninguém senão os homens e mulheres que tentavam gerir aquele lugar, e ele viu-se pela primeira vez como membro de uma ordem esotérica, uma ordem de peritos e videntes, construindo o futuro com habilidade de artesãos, os urbanistas, os gestores de resíduos, os técnicos de compostagem, os paisagistas que haviam de erguer jardins suspensos neste lugar, um futuro parque feito com todo o género de objetos de desejo usados e perdidos e degradados.”
Don DeLillo, in “Submundo” (1997)