Diary: A Ditadura Invisível do Hoje

Diary: A Ditadura Invisível do Hoje

O que se passa no mundo, hoje, é extremamente confuso. Deixámos, há muito tempo, de ter os suportes representativos que ditavam o que era o bom e o mau, o bem e o mal, o certo e o errado. Não que eu queira voltar a esses tempos de ditaduras que estreitavam o cérebro e dignificavam a “normalidade” mas outras ditaduras se levantaram e, para nosso infortúnio, desta vez não há ditadores a quem repudiar.

Paradoxalmente, hoje achamos que podemos tudo e nesse poder, perdemo-nos. O problema é que cada vez podemos menos ao contrário do que achamos.

Hoje não podemos ter opinião porque há sempre alguém pronto a insultar o nosso pensamento.

Hoje não podemos ter uma religião porque todas elas já provaram o quanto nos enganam no bem que prometem e no mal que fazem.

Hoje não podemos ter um partido político porque todos eles já provaram o quanto falham naquilo que defendem.

Hoje não podemos ter ideais porque chega a história e prova-nos que quase todos se tornam radicais.

Hoje não podemos não gostar do que os outros gostam, porque são os outros os juízes do nosso tribunal.

Também não podemos gostar do que quer que seja porque chegam os críticos e chamam-nos básicos.

Hoje não podemos assinalar os podres das outras culturas porque isso é xenofobia. Também não podemos defender a nossa porque isso é protecionismo e pode ser confundido com nacionalismo.

Hoje não podemos dizer piadas porque qualquer palavra pode ofender o humor de alguém.

Hoje não podemos criticar porque a crítica vai contra o politicamente correto e o politicamente correto já provou que é a única coisa que podemos.

Hoje não podemos perguntar, porque as nossas perguntas podem questionar as certezas de alguém e tornam-nos automaticamente racistas, xenófobos, radicais ou ofensivos.

Hoje não podemos comer “carne” porque somos umas bestas insensíveis que matam animais para regalo do estômago.

Hoje não podemos ser gordos porque correr é de graça e as ruas ainda estão à nossa disposição.

Hoje não podemos fumar porque está provado cientificamente que fumar faz mal e com a ciência não se brinca.

Hoje não podemos pensar porque pensar cria ansiedade e a ansiedade cria depressão.

Hoje não podemos achar que sabemos alguma coisa porque o mundo todos os dias nos prova que não sabemos nada.

Hoje não podemos ser nós porque sermos nós é não sermos o outro e não sermos o outro é sermos egoístas e sermos egoístas é não sermos altruístas.

Hoje não podemos ser mulheres, homens, gays ou bissexuais, porque a sociedade já nos provou que os títulos corrompem a justiça.

Hoje não podemos falar porque o medo de dizermos o que os outros não querem ouvir faz-nos calar em vez de responder.

Hoje não podemos assumir o que somos porque o que somos nunca é totalmente o que devíamos ser.

Hoje só podemos reproduzir-nos em fotografias, de cara, de comida ou de viagens, tanto faz, desde que projetem a mentira que queremos parecer.

Hoje podemos muito pouco mas achamos que podemos tudo.

 

Rock&Rolla, 2020