“A França era enorme, com populações diferenciadas pelo seu tipo de alimentação e maneiras de falar, percorrida em julho pelos ciclistas da Volta, cujas etapas íamos seguindo no mapa Michelin preso com pioneses na parede da cozinha. A maior parte das vidas desenrolava-se naquele mesmo perímetro que não ia além de cinquenta quilómetros. Quando na igreja se erguia a uma só voz o refrão do cântico Chez nous soyez reine, à Virgem rainha entre nós, tínhamos a certeza que o entre nós significava ali mesmo onde vivíamos, naquela cidade, quando muito naquele município. O exotismo começava na grande cidade que ficava a mais perto. O resto do mundo era uma coisa irreal. Os mais instruídos ou que desejavam vir a sê-lo inscreviam-se para verem as conferências filmadas Conhecimento do Mundo. Os outros liam as Seleções do Reader’s Digest ou a revista Constellation. O postal ilustrado enviado de Bizerta por um primo que aí estava a fazer o serviço militar fazia-nos mergulhar num sonho fulminante.
Paris era o símbolo da beleza e do poder, uma aliança misteriosa, assustadora, onde cada rua, representada num jornal ou citada num anúncio, boulevard Basbés, rue Gazan, Jean Mineur, avenue des Champs Elysées 116, excitava a imaginação. Os que aí tinham vivido, ou que simplesmente lá tinham ido numa excursão, tinham visto a Torre Eiffel, possuíam uma auréola de superioridade. Nas noites de verão, no final dos dias longos e poeirentos das férias, íamos ver chegar o comboio Expresso, observar os que tinham ido para longe e que voltavam com malas, sacos de compras do Printemps, ou os peregrinos que regressavam de Lourdes. As canções que evocavam regiões desconhecidas, a região Sul do Midi, os Pirenéus, ou as do Fandango do país basco, Montanhas de Itália, México, provocavam desejo. Nas neblinas do pôr do sol bordejadas de rosa vislumbrávamos marajás e palácios indianos. Queixávamo-nos aos pais, “nunca vamos a lado nenhum!”, e eles respondiam admirados “Onde é que tu queres ir, não estás bem aqui?”.
Tudo o que havia em casa tinha sido comprado antes da guerra. As panelas e os tachos estavam escurecidos, sem asas, os púcaros sem esmalte, os cântaros furados, remendados com uns bocados que se fixavam no buraco. Os casacos eram arranjados, os colarinhos das camisas virados, os fatos de domingo passavam a ser de todos-os-dias. Não pararmos de crescer era o desespero das mães, obrigadas a acrescentar os vestidos com uma tira de tecido, a comprar os sapatos um número acima, e já apertados no ano seguinte. Tudo devia ter uso, o estojo dos lápis, a caixa de pintura Lefranc e a caixa de bolachas de manteiga LU. Não se deitava nada fora. Os baldes da noite serviam de estrume no jardim, o esterco apanhado na rua depois de passar um cavalo servia de adubo para os vasos das flores, o jornal servia para embrulhar legumes, secar por dentro os sapatos molhados, limpar o rabo na casa de banho.
Vivíamos com falta de tudo. Objetos, imagens, distrações, explicações acerca de nós e do mundo limitadas ao catecismo e aos sermões da Quaresma do padre Riquet, às últimas notícias de amanhã anunciadas na rádio pela voz poderosa de Geneviève Tabouis, às histórias das mulheres que contavam as suas vidas e as da vizinhança durante a tarde à volta de uma caneca de café. As crianças acreditavam mais tempo no Pai Natal, que os bebés vinham no bico da cegonha ou que os meninos nascem das couves e as meninas das flores.
As pessoas deslocavam-se a pé ou de bicicleta, numa cadência regular, os homens com os joelhos afastados, as pernas das calças presas em baixo com molas, as mulheres com as nádegas apertadas na saia justa, desenhando movimentos fluidos na tranquilidade das ruas. O cenário era de silêncio e a bicicleta marcava a velocidade da vida.
Vivíamos quase na merda. E ríamos.”
[Annie Ernaux in “Os Anos”, Livros do Brasil, 2020]