Calendários Sem Dias

Calendários Sem Dias

Perdi-te num dia qualquer deste caminho que eu achava infinito.
Que desilusão.
Afinal fomos só dois seres humanos que se encontraram e se perderam, como quase sempre acontece.

(Ainda ontem aqui estavas.
Como um pedaço de eternidade em abraços encaixados.)

Como é que isto nos aconteceu?
Éramos fortes, seguros e firmes – e de nada valeu.
Que mentira tão grande é esta do amor.
Corrói a alma. Deteriora o corpo. Fura as entranhas e esmaga as promessas.
Acabou, – exatamente como começou – um dia aleatório, igual aos outros todos.

Fomos só o tempo que durou a distância entre dois dias num calendário qualquer.

Um silêncio imenso e um abismo maior do que nós.
Uma ausência. Avassaladora.

Os dias em que prometemos o mundo um ao outro já não existem.
Eu dava-te a calma e tu davas-me a paz – mentimos visceralmente.
Mas fazia tanto sentido viver esta verdade falsa.
Até deixar de fazer. Até deixar ser.
Não somos mais o infinito em que acreditámos.
E o que ficou são apenas sombras.

(Fantasmas imor(t)ais que se cravam na pele e se transformam em história.)

No fim só restam, sempre, as sombras – impalpáveis e desfocadas – réstias ínfimas de lembranças difusas.

A luz esvai-se no caminho quando reparámos nos pormenores.

A escuridão, – a que devemos agradecer – como se o propósito de tudo o resto fosse exatamente o buraco escuro e frio onde caímos.
Conhecer a escuridão, tratá-la na primeira pessoa.

Aprender que é no escuro da vida que melhor se vê.
Que a destruição completa do que achámos que somos nos faz ficar mais perto do que realmente queremos ser.

Enfrentar o nada – quando, os calendários nos convenceram que o tudo era infinito.

O nada sobra para dar nome ao vazio – às entranhas congeladas .
Para lembrar que chegou a hora de assumir que dói – e que doer significa sempre crescer.
Esgares de dor profícuos.
Esgares de dor essenciais para lembrar que, debaixo da pele, somos todos feitos de medos viscerais.

Horas irrecuperáveis, desperdiçadas em impossíveis.

Lugares arrancados ao que ontem era hábito.
Expressões retorcidas – máscaras que nunca saberemos o quão reais podiam ter sido.

Um ruído de fundo constante, inaudível ao resto do mundo, acompanha os primeiros dias.
Buldózeres e caterpílares, uma missão de terraplanagem cerebral sem data de conclusão.

A certeza de que, no futuro, voltámos a ser desconhecidos.
Exatamente como fomos antes daquele dia aleatório, perdido num calendário qualquer, ter acontecido.

Embarcámos numa ilusão criada à imagem da perfeição – e sempre soubemos que a perfeição não existe!
O parecer possível chegou para nos fazer querer.
Porque quando se quer vale sempre a pena, mesmo que acabe.

A perfeição – essa besta sem existência que nos persegue a todos. Sem exceção.

Que nos faz aceitar defeitos que não são nossos.
Que nos torna submissos.
Psicanálise disruptiva que perdoa tudo.
Não ver, não ouvir, não saber, não ser.
Anulações contínuas. Vezes sem conta.

O mundo vai encolhendo à medida que os sonhos morrem.
O infinito deixa de existir.

(Foram os teus olhos que me disseram.
Talvez até antes de tu saberes: o amor morreu.)

Um relâmpago entre um piscar de olhos.
Um frio gelado que percorre o corpo todo.
E nada volta a ser o que era.

A trovoada avisa da tempestade a chegar.
O céu enche-se de nuvens que roubam a luz.

As coisas mudaram de cor.
Vamos ter de nos despedir.

Uma fração de segundo é suficiente para matar a eternidade.
Virar a realidade do avesso e deixarmos de saber quem somos.

O paradoxo do amor em todo o seu esplendor.
A crueza dos homens – a nudez do mundo.
A vida numa das suas mais belas epopeias.

O amor que acaba por matar.

O adeus inevitável.
Racional, leve e lento.
Um torpor involuntário que anestesia a consciência.

Amámos profundamente alguém que,
No tempo que duram mil dias,
Transformou amor em obsessão,
Liberdade em dependência,
Alegria em tristeza.

Amámos profundamente alguém que nos destrói.
Que nos faz ficar aquém dos sonhos de sempre.
Amámos profundamente alguém que nos convence a desistir de quem somos.

Não de forma visível e nunca de uma assentada só.
Tão paulatinamente que podemos demorar a vida inteira a reparar no absurdo
Que nos tornámos.
No quão deixámos de ser.

Começámos por negar.
Arranjámos desculpas, desvalorizámos, fingimos que não aconteceu.
Aceitámos que o problema está em nós.
Decidimos, racionalmente, não querer ver.

Castrar a liberdade em prol da ilusão de segurança – tão legítima como irracional.
Ou acordar a coragem – esse super poder que, na maior parte do tempo, nos esquecemos que temos.

Decidir o dia do calendário.
Analisar, pela última vez, os ângulos todos.
Medir a felicidade prometida.
Marcar a despedida.

Encher a alma de coragem e virar as costas.
Enfrentar a verdade – a dor de ter falhado.
E a salvação – a certeza de ter tentado tudo.
A certeza de termos sido a melhor versão do que alguma vez fomos.
A certeza de que superámos as nossas expectativas, e que isso basta.

Porque a única verdade que devemos exigir, é a nossa.
E desistir ,às vezes, é tudo o que resta para nos salvarmos.

***

Há sempre uma hora em que a dúvida aparece.
Uma hora em que pomos em causa a decisão que tomámos e tentámos imaginar como poderia ter sido.
A hora em que devemos agradecer à racionalidade – ao poder que ela nos dá para nos libertarmos.

 

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