“A era da felicidade das massas celebra a individualidade livre, privilegia a comunicação e multiplica as escolhas e as opções. De facto, a cultura da felicidade não se concebe sem todo um arsenal de normas, de informações técnicas e científicas capazes de estimular um trabalho permanente de autocontrolo e de vigilância de si próprio: depois do imperativo categórico, o imperativo narcísico incessantemente glorificado pela cultura higiénica e desportiva, estética e dietética.
Manter-se em forma, lutar contra as rugas, zelar por uma alimentação saudável, bronzear-se, manter a linha, descansar, a felicidade individualista é inseparável de um extraordinário forcing no esforço de dinamização, de conservação, de gestão otimizada de si próprio.
Já não se trata, como antes, de governar idealmente as paixões individuais, mas sim de otimizar os nossos potenciais; já não se trata da aceitação resignada do tempo, mas da eterna juventude do corpo; já não se trata da sabedoria, mas do trabalho que cada um é capaz de executar.
Por um lado, a época além-dever líquida a cultura autoritária e puritana tradicional; por outro, gera novos imperativos (juventude, saúde, elegância, forma, lazer, sexo) de autoconstrução individual, sem dúvida personalizados, mas que criam um estado de hiper-mobilização, de stress e de reciclagem permanente.
A cultura da felicidade desculpabiliza a auto-absorção subjetiva, mas, ao mesmo tempo, desencadeia uma dinâmica de ansiedade, provocada pelas próprias normas do bem-estar e do melhor-parecer que a constituem.
Duas tendências antinómicas moldam as nossas sociedades. Uma, incita aos prazeres imediatos, quer eles sejam consumistas, sexuais ou distrativos: sobrevaloriza pornografia, droga, sexo selvagem, bulimia de objectos e de programas mediáticos, explosão do crédito e endividamento doméstico. Aqui, o hedonismo exprime e intensifica o culto individualista do presente, desqualifica o valor do trabalho, contribui para dessocializar, desestruturar e marginalizar as minorias éticas das grandes metrópoles e os rejeitados dos subúrbios. Em contrapartida, a outra privilegia a gestão ‘racional’ do tempo e do corpo, o profissionalismo em todas as coisas, a obsessão pela excelência e pela qualidade, pela saúde, pela higiene.
Vemos instalar-se um hedonismo dual, desordenado e desresponsabilizante para as novas minorias de massa, prudente e integrador para as maiorias silenciosas. Dizer das nossas sociedades que elas são hedonistas não significa que elas sejam entregues sem reservas à espiral desenfreada dos prazeres. (…) Sociedade hedonista significa que os prazeres passaram a ser, por natureza, legítimos, objetos de informações, de estimulações e de diversificações sistemáticas. O prazer deixou de ser banido, passou a ser massivamente valorizado e normalizado.”
Gilles Lipovetsky, in “O Crepúsculo do Dever”, 2004