“O presente já não é algo que simplesmente se oferece ao nosso olhar, sem empenhamento teórico, interpretativo e antecipatório.
Ser concreto no mundo de hoje exige um esforço teórico; para distrações, já nos bastam as da vida imediata e prática, tão pouco reconhecidas e por isso mesmo tão difíceis de superar.
O estudo da sociedade dá-nos hoje a imagem de um campo desestruturado e não a de um objecto iluminado pelo saber e cujos elementos se inserissem num todo coerente.
É indubitável que vivemos numa sociedade que escapa à nossa compreensão teórica e ao nosso domínio prático em mais inquietante medida que noutras épocas menos perplexas acerca de si próprias.
Complexidade, contingência e intransparência são algumas das características que compõem a sociedade contemporânea.
O aspecto da sociedade contemporânea oferece-nos heterogeneidade, dissensão, caos, desordem, diferença, ambivalência, fragmentação, dispersão; as sensações que produz identificam-se com a intransparência, a incerteza e a insegurança; e todo este processo contemporâneo se traduz em ingovernabilidade e inacessibilidade.
A dinâmica da sociedade ameaça-nos com riscos sistémicos que realmente nos tocam, mas essas cadeias causais são tão complexas, indirectas e opacas que se torna muito difícil identificá-las e combatê-las.
Os sistemas complexos caracterizam-se, precisamente, porque não podem dominar ao mesmo tempo e da mesma maneira todas as variáveis que neles intervêm.
Quanto mais complexo é um sistema, a mais contingências está submetido: mais interações inesperadas podem nele surgir perante as quais ele não tem condições para plenamente se defender.
Os sistemas de elevada complexidade vieram desestabilizar radicalmente a ideia de que os fenómenos podem ser completamente identificados, compreendidos e manejados.
A forma das nossas sociedades cria uma distância entre o homem e a sociedade.
A anarquia dos processos afasta a sociedade dos homens e torna-a intransparente.
As lógicas e as gramáticas dos sistemas simbólicos da sociedade chegaram a um grau de autonomia que de há tempos a configura como realidade em boa medida independente dos homens singulares concretos, dos seus esforços e projectos coletivos e, evidentemente, da sua capacidade de observação e compreensão.
Já não vivemos num mundo de objectividades consistentes e indiscutíveis, ordenado por representações e regido por um pensamento capaz de entender-se a próprio como representação neutra da realidade exterior.
Os meios técnicos da sociedade de informação constituíram-se em iniludíveis a priori históricos da nossa percepção e do nosso comportamento.
A cultura da simulação debilitou em demasia o princípio da realidade e a ideia de manipulação transformou-se num conceito descritivo, sem conotações críticas.
Atribuímos à visibilidade um valor central ao qual se associam outros, como a sinceridade, a autenticidade, a imediatez ou a transparência.
A minha hipótese é que esta visibilidade se tornou, já há algum tempo, problemática ou fictícia. Tem-se a impressão de tudo estar à vista mas de que, ao mesmo tempo, são cada vez mais invisíveis, menos identificáveis, os poderes que de facto nos determinam.
Os sinais são de interpretação mais difícil, e para lá das aparências abre-se um fosso indecifrável no qual se ocultam os verdadeiros significados das coisas que nos acontecem.
As evidências escasseiam num mundo complexo em que tudo o que se pode saber tem o estatuto de uma suposição ou de uma suspeita.
Existe uma cegueira própria da excessiva visibilidade, é que ver não é o mesmo que compreender.
A visibilidade e a transparência dos meios de comunicação produzem uma cegueira específica: a profusão de imagens e palavras satura-nos com uma massa indiferenciada de factos brutos, lançando uma superfície espessa e desorientadora sobre um fundo indiferenciado.
A profusão de imagens pode mascarar a sociedade.
Ocorreu uma “virtualização da sociedade”.
A explosão do pluralismo e a diversificação dos modos de vida conduzem-nos a um mundo mais enigmático, heterogéneo e dificilmente compreensível.
O aumento do saber é acompanhado pelo crescimento das zonas de incerteza.
O mundo é hoje povoado por realidades invisíveis como o risco e a oportunidade, ambas despojadas de juízos definitivos e incontroversos.
Há uma crise de representação que nos priva de sistemas de orientação capazes de nos habilitar a esquematizar a realidade e a reduzi-la a dimensões manejáveis, e por isso a política encontra tantas dificuldades para se fazer valer, para configurar e governar num mundo globalizado.
O poder deslocou-se, em boa medida, dos estados nacionais para conglomerados anónimos com localização incerta é que não têm que prestar contas a um eleitorado.
O mal-estar procede de ameaças dificilmente identificáveis, e é isso que produz uma inquietação muito diferente daquela que os perigos visíveis causam.
O actual dirigente já não precisa de ler muito nem de pensar muito. Nem sequer tem de argumentar ou de ser convincente: basta-lhe manejar correctamente os dispositivos da atenção pública.
Já não são precisas ideias para convencer, mas apenas processos para distrair.”
Daniel Innerarity, in “A Sociedade Invisível”, 2004