“Como levamos as pessoas a acreditar numa ordem imaginada como o Cristianismo, a Democracia ou o Capitalismo? Primeiro , nunca admitimos que a ordem é imaginada. Insistimos sempre que a ordem que sustém a sociedade é uma realidade objetiva criada pelos grandes deuses ou pelas leis da natureza.Também educamos exaustivamente as pessoas. Desde que nascem, relembramo-las constantemente dos princípios da ordem imaginada, que são incorporados em tudo e mais alguma coisa. São incorporados nos contos de fadas, nas peças de teatro, nos quadros, nas músicas, na etiqueta, na propaganda política, na arquitetura, nas receitas e nas modas.
As humanidades e as ciências sociais dedicam a maior parte da sua energia a explicar como, exatamente, a ordem imaginada se entretece no tecido da vida. No espaço limitado que temos à nossa disposição, apenas podemos tocar na superfície.
Três fatores principais impedem as pessoas de compreender que a ordem que organiza as suas vidas só existe na sua imaginação:
1. A ordem imaginada está incorporada no mundo material.
Embora a ordem imaginada só exista nas nossas mentes, pode ser entretecida na realidade material que nos rodeia e até gravada em pedra. A maior parte dos ocidentais acredita, hoje em dia, no individualismo. Acreditam que cada ser humano é um indivíduo, cujo valor não depende do que outras pessoas pensam acerca dele ou dela. Cada um de nós tem, dentro de si, um brilhante raio de luz que confere valor e significado às nossas vidas. Nas modernas escolas ocidentais, os professores e os pais dizem aos filhos que, se os colegas gozarem com eles, devem ignorá-los. Só eles mesmos, não os outros, conhecem o seu verdadeiro valor.
Na arquitetura moderna, este mito salta da imaginação para tomar forma em pedra e argamassa. A casa moderna ideal está dividida em muitos quartos pequenos, de tal forma que cada criança pode ter um espaço privado, escondido dos olhares dos outros, conferindo-lhe um máximo de autonomia. Este quarto privado tem, quase invariavelmente, uma porta, e em muitas casas é prática aceite que a criança feche ou tranque a porta. Até os pais estão proibidos de entrar sem bater e pedir autorização. O quarto é decorado conforme os desejos da criança, com cartazes de estrelas rock na parede e meias sujas espalhadas pelo chão. Uma pessoa criada num tal espaço não pode deixar de se imaginar “um indivíduo”.
Os nobres medievais não acreditavam no individualismo. O valor de uma pessoa era determinado pelo seu lugar na hierarquia social e pelo que outras pessoas diziam acerca de si. Que se rissem delas era uma indignidade horrível. Os nobres ensinavam os filhos a proteger o seu bom nome a qualquer custo. Como o individualismo moderno, o sistema de valores medieval saía do campo da imaginação e manifestava-se na pedra dos castelos medievais. O castelo raramente incluía quartos privados para as crianças. O filho adolescente de um barão medieval não tinha um quarto privado no segundo andar do castelo, com cartazes de Ricardo, Coração de Leão ou do Rei Artur nas paredes e uma porta trancada que os pais não estavam autorizados a abrir. Dormia ao lado de muitos outros jovens, num grande salão. Estava constantemente em exposição e tinha sempre de ter em consideração o que os outros viam e diziam. Uma pessoa que crescesse em tais condições concluía, naturalmente, que o verdadeiro valor de um homem era determinado pelo seu lugar na hierarquia social e pelo que outras pessoas diziam acerca dela.
2. A ordem imaginada dá forma aos nossos desejos.
A maior parte das pessoas não quer acreditar que a ordem que governa as suas vidas é imaginária, mas, de facto, cada pessoa nasce numa ordem preexistente e os seus desejos são enformados, desde o nascimento, pelos mitos dominantes. Os nossos desejos pessoais tornam-se, como tal, as mais importantes defesas da ordem imaginada.
Por exemplo, os desejos mais queridos dos ocidentais nos dias modernos são enformados pelos mitos românticos, nacionalistas, capitalistas e humanistas, que vigoram há séculos.
Até aquilo que as pessoas consideram os seus desejos mais pessoais são, por norma, programados pela ordem imaginada. Consideremos, por exemplo, o desejo popular de fazer férias no estrangeiro. As pessoas, hoje, gastam muito dinheiro em férias no estrangeiro porque são verdadeiros crentes nos mitos do consumismo romântico.
O romantismo diz-nos que, para aproveitar ao máximo o nosso potencial humano, devemos ter tantas experiências diferentes quanto possível. Temos de nos abrir a um vasto espectro de emoções; temos de experimentar vários tipos de relacionamentos; temos de provar diferentes tipos de cozinhas; temos de aprender a apreciar diferentes estilos de música. Uma das melhores maneiras de fazer tudo isto é libertarmo-nos da nossa rotina diária, deixar para trás o nosso enquadramento familiar e viajar por terras distantes, onde podemos “experimentar” a cultura, os cheiros, os gostos e as normas de outras pessoas. Ouvimos vezes sem conta os mitos românticos sobre “como uma nova experiência abriu os meus olhos e mudou a minha vida”.
O consumismo diz-nos que, para sermos felizes, temos de consumir tantos produtos e serviços quanto possível. Se sentirmos que falta alguma coisa, ou que algo não está bem, o mais provável é que precisemos de comprar um produto ou um serviço. Todos os anúncios televisivos são mais uma pequena lenda sobre como consumir um determinado produto ou serviço torna a vida melhor.
O romantismo, que encoraja a variedade, mescla-se na perfeição com o consumismo. O seu casamento gerou um “mercado de experiências” infinito, sobre o qual foi estabelecida a indústria do turismo. A indústria do turismo não vende bilhetes de avião e quartos de hotel. Vende experiências. Paris não é uma cidade nem a Índia um país – são experiências, cujo consumo deverá abrir os nossos horizontes, satisfazer o nosso potencial humano e deixar-nos mais felizes.
Como a elite do antigo Egito, a maioria das pessoas da maior parte das culturas dedica a vida à construção de pirâmides. Apenas os nomes, formas e tamanhos destas pirâmides mudam de uma cultura para outra. Podem assumir a forma, por exemplo, de uma vivenda suburbana com uma piscina e um relvado sempre verde, ou de um resplandecente apartamento no último piso, com uma vista invejável. Poucos questionam os mitos que nos fazem desejar, desde logo, a pirâmide.
3. A ordem imaginada é intersubjetiva.
Mesmo que, com um esforço sobre-humano, conseguisse libertar os meus desejos pessoais das garras da ordem imaginada, continuaria a ser apenas uma pessoa. Para mudar a ordem imaginada teria de convencer milhões de estranhos a cooperar comigo, pois esta não é uma ordem subjetiva que existe apenas na minha imaginação – é, pelo contrário, uma ordem intersubjetiva que existe na imaginação partilhada de milhares e milhões de pessoas.
O intersubjetivo é algo que existe no interior de uma rede de comunicações que une a consciência subjetiva de muitos indivíduos. Que um indivíduo altere as suas crenças, ou até morra, é de pouca importância. No entanto, se a maior parte dos indivíduos da rede mudar ou alterar as suas crenças, o fenómeno intersubjetivo alterar-se-á ou desaparecerá. Os fenómenos intersubjetivos não são fraudes malévolas nem charadas insignificantes. Têm uma existência diferente dos fenómenos objetivos como a radioatividade, mas o seu impacto no mundo ainda pode ser enorme. Muitas das forças motrizes mais importantes da História são intersubjetivas: a lei, o dinheiro, deuses e nações.
Estas ordens imaginadas são intersubjetivas, pelo que para transformá-las temos de mudar, ao mesmo tempo, a consciência de milhões de pessoas, o que não é fácil. Uma mudança de tal magnitude só pode ser atingida com a ajuda de uma organização complexa, como um partido político, um movimento ideológico ou um culto religioso. No entanto, para estabelecer organizações assim tão complexas é preciso convencer muitos estranhos a cooperarem uns com os outros. E isso só acontecerá se os estranhos acreditarem em alguns mitos partilhados. Ou seja, para alterar uma ordem imaginada temos, primeiro, de acreditar numa ordem imaginada alternativa.
Não temos como escapar da ordem imaginada. Quando derrubamos as paredes da prisão e corremos para a liberdade, estamos, de facto, a correr para o pátio de uma prisão maior.”
Yuval Harari, in “Sapiens – História Breve da Humanidade” (2011)