“Cada época histórica tem sido caracterizada por um conjunto de explicações interligadas da realidade, com base nas quais se desenvolvem compromissos sociais, políticos e económicos. Mundo clássico, Idade Média, Renascimento e mundo moderno, todos eles cultivam os seus conceitos de indivíduo e de sociedade, e teorizam sobre onde e como se encaixam na ordem perene das coisas. Quando o entendimento prevalecente deixou de ser suficiente para explicar as perceções da realidade – os eventos experienciados, as descobertas realizadas, o encontro com outras culturas – ocorreram revoluções no pensamento e nasceu uma nova época.
A emergência da era da IA está a colocar problemas de entendimento da realidade que indiciam uma mudança de época.
Ciberespaço:
Ao comprimir a moldura de tempo em que a tecnologia altera a experiência de vida, a revolução do digital e o avanço da IA geraram fenómenos que são genuinamente novos. À medida que se foram tornando mais velozes e mais pequenos, os computadores puderam ser integrados em telemóveis, relógios, utensílios e aparelhos domésticos, veículos, armas… e até corpos humanos. Atualmente, a comunicação através e entre esses sistemas digitais é praticamente instantânea. Tarefas que eram manuais ainda há uma geração (leitura, buscas, compras, linguagem, registo, vigilância e planeamento e gestão militar) são agora digitais, assentes em dados, e atuando no mesmo domínio – o ciberespaço.
A Digitalização do Mundo
Todos os níveis da organização humana foram afetados por esta «digitalização»: através dos seus computadores e dos seus telemóveis, os indivíduos «possuem» (ou, ao menos, podem aceder a) mais informação do que nunca. Mas a informação não é autoexplicativa; a informação depende do contexto. Para ser útil, ou, no mínimo, significante, tem de ser compreendida à luz da cultura e da história. Quando é contextualizada a informação torna-se conhecimento. Quando suscita convicções, o conhecimento torna-se sabedoria. No entanto, a Internet inunda os utilizadores com as opiniões de milhares e até milhões de outras pessoas, privando-os da solidão necessária à reflexão atenta, que foi, historicamente, aquilo que conduziu ao desenvolvimento de convicções. À medida que diminui a solidão, diminui também a força de espírito, não apenas para desenvolver convicções, mas também para lhes sermos fiéis, sobretudo quando exigem a travessia de caminhos novos e tantas vezes solitários.
O mundo digital tem pouca paciência para a sabedoria; os seus valores são moldados pela aprovação, e não pela introspeção.
O Chat GPT
A OpenAI apresentou o GPT-3 – Generative Pre-Trained Transformer, sendo o 3 o indicativo de «terceira geração», um modelo que, quando solicitado consegue gerar textos de tipo humano. Sendo-lhe dado o tópico, consegue produzir parágrafos credíveis; sendo-lhe feita uma pergunta, dá várias respostas; sendo-lhe pedido que opine sobre determinado tópico, sobre o qual lhe é fornecida informação, consegue escrever um ensaio; sendo-lhe dadas algumas linhas de diálogo, consegue escrever uma conversa potencial. Consegue fazê-lo com qualquer tema sobre o qual haja informação online. Diferentemente das IA que abordam determinada tarefa específica como jogar xadrez ou descobrir possíveis antibióticos, os modelos como o GPT-3 geram respostas possíveis para solicitações diversas (por isso chamados modelos generativos). Umas vezes, os seus resultados parecem intrinsecamente humanos. Outras vezes, são disparatados, ou meras repetições e combinações mecânicas de frases humanas.
Inteligências Artificiais Generativas
As IA são imprecisas, dinâmicas, emergentes e capazes de «aprender». As IA «aprendem» mediante o consumo de dados e retirando depois observações e conclusões com base nesses dados. Enquanto os sistemas anteriores exigiam inputs e outputs exatos, as IA com função imprecisa não necessitam nem de uma coisa nem da outra. Estas IA traduzem textos não pela substituição de palavras individualizadas, mas mediante a identificação e utilização de frases e padrões idiomáticos. Além disso, estas IA são consideradas dinâmicas, porque evoluem em reação à mudança de circunstâncias, e emergentes porque conseguem identificar soluções que são novidade para os humanos. Em máquinas, estas quatro qualidades são revolucionárias.
As Plataformas de Rede
Em menos de uma geração, as plataformas de rede mais bem-sucedidas reuniram bases de utilizadores maiores do que a população da maior parte dos países, e até de alguns continentes. Todavia, grandes populações de utilizadores reunidas em plataformas de rede populares têm «fronteiras» mais difusas do que as da geografia política, e entidades administradoras com interesses diferentes dos de uma nação. Os operadores de plataformas de rede não pensam necessariamente em termos de prioridades de governo ou estratégia nacional, sobretudo quando tais decisões possam entrar em conflito com o serviço aos respetivos clientes. Essas plataformas de rede podem «albergar» ou auxiliar atividades económicas e sociais que ultrapassam as da maioria dos países (em número e em escala), apesar de não desempenharem nenhuma política económica, orçamental ou social nos termos em que o fazem os governos. Assim, embora funcionem como entidades comerciais, algumas plataformas de rede estão a tornar-se atores geopoliticamente significativos em virtude da sua escala, do papel que desempenham e da influência que têm.
A Aprendizagem Automática
Quando os investigadores do IMT conceberam um algoritmo de aprendizagem automática para prever as propriedades antibacterianas das moléculas, treinando o algoritmo com um conjunto de dados de mais de duas mil moléculas, o resultado foi algo que nenhum algoritmo convencional (e seguramente nenhum humano) poderia conseguir. Não é apenas o facto de os humanos não compreenderem as numerosas conexões que a IA revelou entre as propriedades de um composto e as suas aptidões antibióticas, mas, ainda mais decisivamente, o facto de as próprias propriedades não serem suscetíveis de ser expressas como regras. Um algoritmo de aprendizagem automática que aperfeiçoa um modelo com base em dados intrínsecos é capaz de reconhecer relações que escapam aos humanos.”
(Continua…)
In, A Era da Inteligência Artificial de Henry Kissinger, Eric Schimdt, Daniel Hunttenlocher, 2021, Dom Quixote