A marcha da história moderna deu azo à formação de um tipo inédito: as sociedades pós-moralistas.
Sociedade pós-moralista: entenda-se uma sociedade que repudia a retórica do dever austero, integral, maniqueísta, e que, paralelamente, exalta os direitos individuais à autonomia, ao desejo é à felicidade, dando crédito apenas às normas indolores da vida ética. Longe de se opor frontalmente à cultura individualista pós-moralista, a ética é uma das manifestações exemplares dessa cultura. O pós-dever não é sinónimo de sociedades em comunhão numa tolerância permissiva, que aspiram apenas ao alargamento dos direitos individuais.
Quando se julgava ver recuar o fanatismo moral, ele prossegue, animado por movimentos periféricos; longe de pacificar o debate ético, a cultura à margem do dever agudiza-o, transporta-o ao nível das massas e cava o antagonismo das perspectivas. É o desenvolvimento paralelo de duas de duas maneiras antitéticas de considerar os valores.
De um lado, uma lógica flexível e dialogada, liberal e pragmática, apostada na construção gradual de limites, definindo princípios, integrando critérios múltiplos, instituindo derrogações e excepções. Do outro, dispositivos maniqueístas, lógicas estritamente binárias, argumentações mais doutrinárias do que realistas, mais preocupadas com o rigorismo ostensivo do que com progressos humanistas, com a repressão do que com a prevenção.
A ilusão ideológica não foi enterrada nas ruínas das “religiões seculares”, reincarna no eticismo, a nova figura desencantada da “falsa consciência”. Desgraçada ética que, reduzida a si mesma, se parece mais com uma operação de cosmética do que com um instrumento capaz de corrigir os vícios ou os excessos do nosso universo individualista e tecno-científico. Regozija-se com o sucesso da teleassistência, aplaudem-se as declarações de ética, as comissões de especialistas, o auxílio humanitário: muito bem.
De todos os lados, fica-se extasiado diante da nova lucidez ética entendida como a fixação dos limites: mas é preciso não se ser cego em relação aos limites redibitórios, ou seja, os efeitos perversos da ética erigida em panaceia. Nestas condições, será forçoso reabilitar a inteligência sob a forma de ética, que não prescreve a erradicação dos interesses pessoais, mas sim a sua moderação, que não exige o heroísmo do desinteresse, mas sim a procura de compromissos razoáveis, de “medidas justas” adaptadas às circunstâncias e aos homens tal como são.
Mais do que nunca devemos rejeitar a “ética da convicção”, tanto quanto o amoralismo da “mão invisível”, em benefício de uma ética dialogada. Vivam os bons sentimentos, mas quem contestará o facto de eles serem mais efémeros do que estáveis, o facto de que, a contar apenas com eles, a sociedade não conseguirá progredir no caminho do bem-estar e da justiça social? E não existem outras soluções realistas a longo prazo que não sejam a formação dos homens, o desenvolvimento e a difusão do saber.
A era pós-moralista não deve convidar, nem ao sonho de uma ressurreição do dever “maximalista”, nem às aberrações de uma “recuperação” da ética; deve reafirmar a primazia do respeito pelo homem, denunciar as armadilhas do moralismo, promover éticas inteligentes, favorecer soluções de compromisso assentes nos princípios humanistas de base, mas em consonância com as circunstâncias, com os interesses e as exigências de eficácia. Elogio da razão que não tem, é certo, a ambição de criar corações puros, mas de que outro meio dispomos para corrigir as injustiças do mundo, construir um mundo social menos desumano e mais responsável?
Gilles Lipovetsky in “O Crepúsculo do Dever“, 2004, Dom Quixote