A Experiência do “Lager”, por Primo Levi

A Experiência do “Lager”, por Primo Levi

“Estamos de facto convictos de que nenhuma experiência humana é privada de sentido e indigna de ser analisada, e que, pelo contrário, deste mundo particular de que estamos a falar se podem tirar valores fundamentais, mesmo que nem sempre positivos. Queríamos levar o leitor a considerar como o Lager foi também, e em notável medida, uma gigantesca experiência biológica e social.

Fechem-se entre arames farpados milhares de indivíduos diferentes em idade, condição, origem, língua, cultura e hábitos, e obriguem-se, nesse lugar, a um regime de vida constante, controlável, idêntico para todos e abaixo de todas as necessidades; é quanto de mais rigoroso um experimentador poderia instituir para estabelecer o que é essencial e o que é adquirido no comportamento do animal-homem perante a luta da vida.

Diante das carências e do mal-estar físico obsessivos, muitos hábitos e muitos instintos sociais ficam completamente silenciados.

Parece-nos, no entanto, digno de atenção este facto: verifica-se que existem entre os homens duas classes particularmente bem distintas: os que se salvam e os que sucumbem. Esta divisão é muito menos evidente na vida comum; aí, não é frequente acontecer que um homem se perca, pois normalmente o homem não está só e, no seu subir e descer, está ligado ao destino dos que o rodeiam; pelo que só excecionalmente acontece que alguém cresça sem limites, ou desça continuamente de derrota em derrota até à ruína.

Mas no Lager tudo acontece de outra forma: aqui, a luta para sobreviver é sem remissão, porque cada um está desesperada e ferozmente só. Se um Null Achtzehn qualquer vacilar não encontrará quem lhe estenda a mão, mas sim alguém que o deitará abaixo, pois ninguém está interessado em que um «muçulmano»* a mais se arraste todos os dias para o trabalho; e se alguém, com um milagre de paciência selvagem e astúcia, encontrar uma nova combinação para escapar ao trabalho mais duro, uma nova artimanha que lhe proporcione alguns gramas de pão, procurará manter secreta a forma como o conseguiu, e por isso será estimado e respeitado, e tirará um lucro exclusivo e pessoal; tornar-se-á mais forte, os outros terão medo dele e, por isso mesmo, será um candidato à sobrevivência.

Na história e na vida parece às vezes vislumbrar-se uma lei feroz, segundo a qual «dar-se-á a quem tiver; tirar-se-á a quem não tiver». No Lager, onde o homem está só e e a luta pela vida se reduz ao seu mecanismo primordial, a lei iníqua está abertamente em vigor, é reconhecida por todos.

Com os aptos, com os indivíduos fortes e astutos, os próprios chefes gostam de manter contactos, que chegam a ser quase-camaradagem, pois esperam poder tirar, talvez mais tarde, algum proveito. Mas aos «muçulmanos», aos homens em fase de degradação, não vale a pena dirigir a palavra, pois já sabe que começariam a queixar-se e a contar o que costumavam comer em casa. Sabe-se que estão aqui de passagem e, dentro de poucas semanas, deles ficará apenas um punhado de cinzas num campo não muito longe daqui, e um número de matrícula riscado num livro de registo.

O resultado deste feroz processo de seleção natural poderia ler-se nas estatísticas de movimento do Lager. Em Auschwitz, no ano de 1944, dos velhos prisioneiros judeus […] só sobreviviam os médicos, os alfaiates, os sapateiros, os músicos, os cozinheiros, os jovens homossexuais atraentes, os amigos ou patrícios de uma ou outra autoridade de campo.

Sucumbir é o mais simples: basta cumprir todas as ordens que se recebem, comer só a ração, obedecer à disciplina do trabalho e do campo. A experiência demonstrou que só em casos excecionais, desta forma, se pode durar para além de três meses. Todos os «muçulmanos» que vão para a câmara de gás têm a mesma história; seguiram o declive até ao fundo, naturalmente, como os rios que vão desaguar no mar. Depois de ter ingressado no campo, por sua incapacidade essencial, ou por azar, ou por um qualquer acidente banal, sucumbiram antes de poderem habituar-se; estão sempre atrasados, só começam a aprender o alemão e a perceber qualquer coisa no infernal emaranhado de leis e de proibições quando o seu próprio corpo já se encontra em fase de aniquilação, e nada os pode salvar da seleção ou da morte por depauperamento.

A sua vida é breve, mas o seu número é enorme; são eles os Muselmanner, os que sucumbem, a coluna vertebral do campo; eles, a massa anónima, continuamente renovada e sempre idêntica, dos não-homens que marcham e se afadigam em silêncio; dentro deles apagou-se a centelha divina, já demasiado vazios para sofrer de verdade. Hesita-se em chamá-los vivos: hesita-se em chamar morte à sua morte, diante da qual não têm medo, pois estão demasiado cansados para poderem aperceber-se dela.”

*Com esta palavra «Muselmann», os velhos do campo designavam os fracos, os ineptos, os votados à seleção.

 

Excertos retirados da obra de Primo Levi, “Se Isto é um Homem”, 1947