“Havia tanto tempo perdido em ti, eras o esboço daquilo que poderias ter sido debaixo de outras estrelas. O molde oco sou eu. Tu tremias, pura e livre como uma chama, como um rio de mercurio, como o primeiro canto de um passaro quando a alvorada desponta, e sabe bem dizer-to com estas palavras que te fascinavam porque pensavas que elas nao existiam a nao ser em poemas e que nao as podíamos usar.
Onde é que tu estás, onde estaremos nós a partir de hoje, dois pontos num universo inexplicável, próximos ou afastados um do outro, dois pontos que criam uma linha, que se afastam e aproximam de forma arbitrária, mas nao te vou explicar isso a que chamam os movimentos brownianos, é claro que nao te vou explicar isso, mas no entanto nós os dois desenhamos uma figura, tu és um ponto em qualquer parte e eu noutra, ambos em movimento, tu agora talvez na rue de lha huchette e eu no teu estudio vazio a ler este romance, e amanha tu na gare de lyon e eu na rue do chemin vert, onde descobri um vinho extraordinario, e pouco a pouco, vamos construindo uma figura absurda, desenhando com os nossos movimentos uma figura idêntica à que duas moscas fazem quando voam numa sala, daqui para ali, de trás para a frente, para cima, para baixo, espasmodicamente, travando no ar, travando o ar, e arrancando noutra direcção no mesmo instante, e esses movimentos vão formando um desenho. Uma figura. Qualquer coisa de inexistente como tu e como eu, como dois pontos perdidos em paris que vao de cá para lá, de lá para cá, fazendo o seu desenho, dançando como ninguém, para ninguém, nem sequer para eles mesmos, uma figura interminável e sem sentido.”
Julio Cortázar, in “Rayuela – O Jogo do Mundo”, 1963