Há umas semanas ouvi muitos opinion makers a compararem a gestão portuguesa da pandemia ao acidente nuclear de Chernobyl e fiquei intrigada. O que estariam a querer dizer com esta comparação datada que se tornava de repente tão atual?
Decidi ir pelo caminho mais rápido – a série da HBO. Cinco episódios e a ideia geral ficava criada. O problema é que depois de ver a série não consegui deixar de ir chafurdar no Google sobre o assunto. O que sobrou daí foi isto:
Na noite de 25 para 26 de abril de 1986 aconteceu um acidente na Central Nuclear de Chernobyl, na Ucrânia. Nesta noite era suposto acontecer um teste de resistência no Reator nº4 da Central, de forma a confirmar que os sistemas de segurança funcionavam corretamente.
Em vez disso, o que acabou por acontecer foi uma incrível explosão, a que se seguiu um incêndio e uma nuvem radioativa sem precedentes. É fácil perceber que o teste não correu como previsto, mas as dúvidas sobre as causas do acidente persistem. Entre uma conceção defeituosa do reator, as condições deficientes em que o teste aconteceu e a falta de preparação técnica da equipa que estava ao serviço, várias foram as explicações encontradas para racionalizar o acidente mais grave que aconteceu até hoje numa Central Nuclear. “Chernobyl” atingiu o valor máximo de gravidade na escala oficial da Agência Atómica Internacional (o que só voltou a acontecer em 2011 em Fukushima).
A fuga radioativa equivalente a 400 bombas de Hiroshima foi impossível de conter. O estado de emergência foi declarado e a evacuação da cidade mais próxima (Pripyat) foi ordenada. O problema é que “Chernobyl” não foi apenas um trágico acidente nuclear. Chernobyl personifica um dos mais graves crimes cometidos contra a humanidade: o encobrimento da verdade. Só a 28 de abril de 1986, depois de uma central nuclear sueca, situada a mais de 1000 km de distância, ter detetado elevados níveis de radioatividade é que o regime soviético (URSS) reconheceu que havia um problema. “Chernobyl” contaminou a atmosfera de vários países – Ucrânia, Bielorrússia, Rússia, Finlândia, Suécia e Noruega – e é indesculpável a tentativa do regime soviético de minimizar a gravidade da situação e escusar-se a prestar imediatamente as informações devidas perante o mundo.
Quando realmente se percebeu a enormidade do que tinha acontecido foi criada uma Zona de Exclusão, um perímetro de 30km à volta da central nuclear que tornou toda a área uma espécie de zona fantasma. Hoje, o perímetro é apenas de 2,900 metros graças à construção do sarcófago (2016) que impede a proliferação da radioatividade que (ainda) emana de Chernobyl. O acidente nuclear de Chernobyl é alvo das mais variadas interpretações o que dificulta o cálculo exato dos seus efeitos. Sabe-se que foram deslocadas 350 mil pessoas, que a saúde de muitos milhares foi afetada direta ou indiretamente e que os custos astronómicos de descontaminação, equipamento técnico e ajudas sociais ainda hoje se faz sentir nos orçamentos da Ucrânia e da Bielorrússia.
Que o número de mortos reconhecidos pelo regime russo tenha estagnado nos 31 explica muita coisa sobre a ideologia em questão. E talvez tudo isto esteja ligado e não seja por acaso que se fala tanto de Chernobyl numa altura em que a Rússia se vê a braços com as ruas cheias de pessoas a manifestarem-se. E não, a causa não é a má gestão da pandemia, essa seria impensável. A causa é a prisão de mais um opositor do sistema que, depois de o regime o ter envenenado e de ter passado várias semanas em coma num hospital da Alemanha, decidiu regressar à Rússia para honrar a sua dignidade.
Depois da tentativa de envenenamento, Alexey Navalny decidiu partilhar um vídeo sobre a vida de Putin. A maneira como chegou a Presidente e o que faz num cargo que, olhando aos últimos vinte anos, considera vitalício. O lado secreto e corrupto de Putin pode ser conhecido aqui: Дворец для Путина. История самой большой взятки
A corrupção e a criminalidade sempre estiveram associadas ao regime russo. E, enquanto deste lado do mundo podemos andar desatentos e achar que tudo mudou e a Rússia é finalmente uma democracia, não podíamos estar mais enganados.
A repressão continua, embora mais maquilhada, as leis que permitem controlar a internet e que limitam a liberdade de expressão são cada vez mais duras. Desde 2015 que está em vigor a lei das “organizações indesejáveis” que permite ao governo ilegalizar, sem passar por um juiz, qualquer organização estrangeira que considere uma ameaça. Com o pretexto do combate ao terrorismo, as operadoras de telecomunicações são obrigadas a guardar e a partilhar com a FSB (sucessor do KGB) os registos de comunicações que lhes forem pedidos.
Em 2017 foi criada a denominação de “agente estrangeiro” e qualquer pessoa que receba financiamento que provenha de fora das fronteiras russas pode ser alvo de multas ou prisão. Esta denominação abarca jornalistas independentes e 188 organizações não governamentais foram consideradas como tal. Novas leis sobre fake news e desrespeito pelas autoridades foram aprovadas em 2019 e transformam em delito a publicação de informações que denotem “desrespeito pela sociedade ou pelo Estado” o que, na realidade, pode ser tudo e mais alguma coisa que o regime reprove. A lei da “internet soberana” permite controlar os fluxos de informação que chegam do exterior e bloquear o serviço de internet temporariamente.
Estes são apenas alguns exemplos da repressão a que o povo russo está sujeito o que nos leva a constatar que Alexey Navalny é apenas a vítima mais recente (e conhecida internacionalmente) de uma longa lista dos considerados “opositores do sistema”. Não é novidade que eliminar os adversários sempre foi a maneira escolhida por Putin para lidar com quem se lhe opõe.
Envenenamentos, assassinatos a tiro, pancadas na cabeça e aparentes suicidios são recorrentes neste país, assim como a prática de mandar opositores para o exílio que ainda vigora (ver caso de Ruslan Shaveddinov).
Alexey Navalny está preso pela décima vez e, infelizmente, os milhares de pessoas que se manifestam nas ruas não parece suficiente para que o aparelho de corrupção, repressão e controlo social seja desmistificado.
Rock&Rolla, Agosto 2021