“Era bom saber se existe amizade realmente? Não me refiro àquele prazer ocasional que faz com que duas pessoas fiquem contentes porque se encontraram, porque num determinado período das suas vidas pensavam da mesma maneira sobre certas questões, porque os seus gostos são semelhantes e os seus passatempos iguais. Nada disso é amizade. Às vezes chego a pensar que é a relação mais forte na vida… talvez por isso seja tão rara. E o que há no seu fundo? Simpatia? É uma palavra imprópria, sem sentido, o seu conteúdo não pode ser suficientemente forte para que duas pessoas intervenham em defesa um do outro nas situações mais críticas da vida… apenas por simpatia? Talvez seja outra coisa…? Talvez exista uma pitada de Eros no fundo de todas as relações humanas? Aqui, na solidão e na floresta, enquanto tentava perceber todas as questões da vida, visto que não tinha outra coisa para fazer, por vezes pensei nisso.
Há sempre criaturas fortes, prontas a ajudar, em todas as comunidades vivas. Encontrei centenas de exemplos disso no mundo animal. Entre pessoas, vi menos exemplos. Para ser mais exato, não vi nenhum. As simpatias que vi nascer entre pessoas diante dos meus olhos, acabaram sempre por se afogar nos pântanos do egoísmo e da vaidade. A camaradagem, o companheirismo, às vezes, parecem amizade. Os interesses comuns por vezes criam situações humanas que são semelhantes à amizade. E as pessoas também fogem da solidão, entrando em todo o tipo de intimidades de que, a maior parte das vezes, se arrependem, mas durante algum tempo podem estar convencidas de que essa intimidade é uma espécie de amizade. Naturalmente, nesses casos, não se trata de verdadeira amizade. Uma pessoa imagina que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E se um amigo falha, porque não é um verdadeiro amigo, podemos acusá-lo, culpando o seu carácter, a sua fraqueza? Quanto vale aquela amizade, em que nós amamos o outro pela sua virtude, fidelidade, perseverança? Quanto vale qualquer afeto que espere recompensa? Não seria nosso dever aceitar o amigo infiel da mesma maneira que o amigo abnegado e fiel? Não seria isso o verdadeiro conteúdo de todas as relações humanas, esse altruísmo que não quer nada e não espera nada, absolutamente nada do outro? E quando se entrega ao outro toda a confiança de uma juventude, toda a abnegação da idade viril, e finalmente se oferece a coisa mais preciosa que um ser humano pode proporcionar a outro ser humano, a sua confiança absoluta, cega e apaixonada, e depois se vê confrontado com o facto de o outro ser infiel e vil, tem direito de se ofender, de exigir vingança? E se realmente se ofende e se grita por vingança, era realmente amigo, o traído e abandonado? Dediquei-me a estas questões teóricas quando fiquei sozinho.
Naturalmente, a solidão não me deu resposta. Nem os livros deram resposta perfeita. Nem os livros antigos, os estudos dos pensadores chineses, hebreus e latinos, nem os modernos que falam sem rodeios, dizem sobretudo palavras e não a verdade. Os livros e as recordações acumulavam-se, adensavam-se. E cada livro continha um bocadinho da verdade e cada recordação insinuava que é vão conhecer a verdadeira natureza das relações humanas, porque nenhum conhecimento nos torna mais sábios. E é por isso que não temos o direito de exigir a verdade e a fidelidade absolutas daquela pessoa que um dia tínhamos aceite como amigo, mesmo que os acontecimentos tivessem mostrado que esse amigo foi infiel. Porque existe a verdade baseada nos factos. Aconteceu isto e aquilo. Aconteceu coisa e tal. Neste ou naquele momento. Não é difícil averiguar isso. Os factos falam por si, afinal, tudo aconteceu e não podem existir equívocos. Mas, às vezes, os factos são apenas consequências deploráveis. Uma pessoa não peca com aquilo que faz, mas com a intenção, com a qual comete isto ou aquilo. A intenção é tudo. Os grandes sistemas jurídicos religiosos do passado, sabem e proclamam isso. Uma pessoa pode cometer infidelidade, um ato infame, sim, até pior, pode matar e, todavia, manter-se puro por dentro. Um ato ainda não é equivalente à verdade. É sempre apenas uma consequência, e se um dia, uma pessoa desempenha o papel de juiz e quer julgar, não pode contentar-se com os factos do relatório da polícia, tem de averiguar aquilo a que os juristas chamam motivo. Uma pessoa não sabe muitas vezes que palavras suas ou atos seus anunciam fatalmente, irrevogavelmente uma certa mudança nas relações humanas.
Temos que nos conformar com aquilo que somos e ter consciência, quando nos conformamos, de que em troca dessa sabedoria, não recebemos elogios da vida, não nos põem no peito nenhuma condecoração por sabermos e aceitarmos que somos vaidosos ou egoístas, carecas e barrigudos – temos que saber que por nada disso recebemos recompensas ou louvores. Temos de suportar, o segredo é isso. Temos que suportar o nosso carácter, o nosso temperamento. Temos que suportar que as pessoas que amamos não nos amem, ou que não nos amem como gostaríamos. Temos de suportar a traição e a infidelidade, e o que é mais difícil entre todas as tarefas humanas, temos que suportar a superioridade moral ou intelectual de outra pessoa.”
Sándor Márai, in “As Velas Ardem Até ao Fim”, 1942